estadao Featured Portuguese

Crise na Ucrânia tem origem em discordância histórica entre Rússia e EUA sobre Otan (Estadão)

 

Período no centro da atual discordância inclui os meses depois da Queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, marcados por discussões entre os EUA e a União Soviética sobre o futuro status da Alemanha

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,crise-na-ucrania-tem-origem-em-discordancia-historica-entre-russia-e-eua-sobre-otan,70003980220

Oliver Stuenkel*, O Estado de S.Paulo
15 de fevereiro de 2022 | 20h00

A atual crise geopolítica na Ucrânia é fruto de uma ameaça russa ou foi provocada pela expansão da Otan pela Europa do Leste? Para o presidente russo, não há dúvidas. Segundo Vladimir Putin, a origem da crise está na decisão americana de violar sua suposta promessa, feita em 1990, de que Washington nunca expandiria a Otan para além da Alemanha Oriental. Em vez de honrar sua palavra, os EUA acabaram, na visão russa, se metendo na Europa do Leste, esfera historicamente pertencente a Moscou, que agora se vê obrigada a retificar uma injustiça histórica.

Para o governo russo, repetir sua versão dos eventos é fundamental. Afinal, Putin – como muitos outros líderes mundo afora – sabem que nada mobiliza mais as pessoas do que o sentimento de traição contra o próprio povo e a proposta de reconquistar a antiga glória da nação. O governo americano, por outro lado, defende que nunca fez tal promessa. Quem está certo?

O período no centro da atual discordância inclui os meses depois da Queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, marcados por discussões entre os EUA e a União Soviética sobre o futuro status da Alemanha. Além de decidir se as superpotências – junto com a França e a Inglaterra – permitiriam a reunificação alemã, era preciso decidir se a Alemanha seria autorizada a ingressar na Otan. Moscou resistia à presença de tropas ocidentais no território da antiga Alemanha Oriental e queria evitar uma expansão da Otan para a Europa do Leste.

Durante reunião em Moscou em fevereiro de 1990, o Secretário de Estado dos EUA, James Baker, perguntou a Mikhail Gorbachev, informalmente, se aceitaria a reunificação alemã caso os EUA fizessem a promessa de não colocar tropas na Alemanha Oriental, mas também de não expandir a Otan para além da Alemanha. Gorbachev respondeu dizendo que estaria aberto à proposta.

Quando regressou a Washington, Baker, que tinha dado a entender que os EUA estariam, em princípio, dispostos a não expandir a Otan, foi desautorizado pelo presidente Bush, o qual preferiu manter todas as opções se houvesse necessidade. Além de Baker, Hans-Dietrich Genscher, chanceler da Alemanha, com receio de que os russos pudessem impedir a reunificação, fez uma série de discursos afirmando que a Alemanha gostaria de fazer parte da Otan, mas que a Otan não se expandiria para o Leste Europeu. Ele também foi desautorizado por Helmut Kohl, o qual percebera a fraqueza russa.

Em conversa sobre o tema à época com Kohl em Camp David, retiro presidencial americano, Bush foi enfático: “Nós ganhamos, e eles não.” A confiança do governo americano, que enxergara na Alemanha unificada um futuro aliado incondicional, aumentou ainda mais devido à estratégia de negociação desastrosa por parte de Gorbachev.

É assim que se explica por que o Tratado sobre a Regulamentação Definitiva referente à Alemanha (conhecido como Tratado Dois-Mais-Quatro), celebrado em 12/9/1990, incluiu apenas a proibição à presença de forças estrangeiras no território da antiga Alemanha Oriental. Não mencionou nem a Otan nem qualquer limitação em relação a uma futura expansão na Europa do Leste.

Avanço ao Leste

O então presidente Bill Clinton, inicialmente cauteloso em relação à expansão da Otan, mudou de ideia por causa de três atores. O primeiro: em 1994, o presidente russo, Boris Yeltsin, enviou tropas para combater uma insurgência separatista na Chechênia, região muçulmana no Cáucaso. Países do Leste Europeu ficaram com medo de uma Rússia mais agressiva e pediram para entrar na Otan assim que possível. O presidente polonês Lech Wałęsa, ex-líder sindical, lutou incansavelmente para que a Polônia fosse admitida. Contra a recomendação de vários assessores, Clinton, aproveitando um momento histórico de unipolaridade americana, redesenhou por completo a arquitetura geopolítica do Leste Europeu.

O segundo fator: em 1994, os Republicanos ganharamas eleições de meio de mandato e pressionaram Clinton a acelerar a expansão da Otan. Por fim, o terceiro e último fator: a Rússia, fragilizada, passou por um momento caótico e não conseguiu resistir à expansão. Na Cúpula de Helsinki em 1997, Clinton ofereceu investimentos de US$ 4 bilhões à Rússia e disse que convidaria os russos para integrar a OMC se Yeltsin aceitasse a expansão da Otan — proposta irrecusável para um país em frangalhos.

Quem então, está certo? A historiadora Mary Sarotte, uma das principais especialistas da época e autora do livro recém lançado “Nem uma polegada: América, Rússia e a criação do impasse pós-Guerra Fria”, diz que a resposta não é tão simples. A promessa de não-expansão que Putin tanto cita hoje em dia nunca foi feita por escrito. A Rússia até pode alegar que os americanos deram a entender que não expandiriam a Otan, mas os EUA não se comprometeram oficialmente.

No entanto, a autora diz também que Washington não foi magnânimo no momento da vitória e sugere que os EUA se aproveitaram, talvez excessivamente, da fraqueza russa. Como vários especialistas na época alertaram, uma vez que a Rússia se estabilizasse economicamente, um futuro líder russo se proporia a reconquistar a antiga glória do país.

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

LIVRO: O MUNDO PÓS-OCIDENTAL

O Mundo Pós-Ocidental
Agora disponível na Amazon e na Zahar.

COLUNAS