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O Brasil e a democratização da política externa

 Lula e Ahmadinejad José Cruz ABr

Em uma conferência recente na Universidade de Ottawa, no Canadá, participantes do mundo inteiro discutiram o estado da democracia nas relações globais, com ênfase no papel desempenhado por potências emergentes. Ativistas da sociedade civil, acadêmicos e formuladores de políticas da Ásia, da Europa, da África e das Américas do Norte e Latina juntaram-se para trocar experiências. Entre as sessões, conversei com uma corajosa mulher indiana que ajudou a organizar eleições no Afeganistão, e com um jovem acadêmico brasileiro em Cambridge, que está estudando o envolvimento do Brasil na África e seu impacto sobre a democracia no continente. 

Já no primeiro dia, o debate rapidamente se voltou para o Brasil, e os protestos que abalaram a nação vários meses antes, a postura do país com relação à Venezuela e à Cuba, e a sua presença inédita na África. Vários participantes se perguntavam o que esses temas representavam para o futuro da democracia em escala global. O Brasil estava comprometido a defender a democracia em sua própria vizinhança?

O primeiro palestrante brasileiro pintou um quadro negativo. Ele argumentou que a política externa brasileira foi sequestrada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e não defende os interesses nacionais desde 2002. Segundo ele, a politização da política externa está entre os elementos mais nocivos do legado de Lula. A decisão de Celso Amorim de se juntar ao PT, enquanto chefiava o Itamaraty, simboliza a confusão feita por formuladores de políticas entre “políticas de estado” e “políticas de partido”, de acordo com o palestrante. A consequência é que o maior interesse do Brasil, hoje em dia, deixa de ser o progresso da democracia, e se torna a aproximação com líderes esquerdistas em Caracas e Havana, e a promoção da “cooperação sul-sul anti-hegemônica”.

A meu ver, essa crítica ignora dois pontos importantes. Primeiro, a política externa não mudou tanto assim depois que Lula assumiu a presidência. Seu predecessor, Fernando Henrique Cardoso, relutava em pressionar Cuba. A ideia de convidar a Venezuela para se juntar ao Mercosul também foi de Fernando Henrique, não de Lula. Por último, Fernando Henrique já reconhecia a importância da África e de outras potências emergentes, e não expressou crítica nenhuma das viagens frequentes de Lula ao continente africano. Celso Amorim, que elaborou e implementou a decisão do Brasil de se engajar com o Sul Global, possivelmente teria sido Ministro das Relações Exteriores mesmo que Lula tivesse perdido em 2002.

Mais importante ainda, criticar a politização da política externa é como rejeitar a integração da política externa ao processo democrático. Similarmente a políticas de saúde ou de educação, a política externa é uma disciplina que faz parte da estratégia política geral de um governo, e deve ser objeto de análise pública. É natural que a estratégia e o foco em cada uma dessas áreas possam mudar de acordo com o partido que está no poder. Da mesma forma como o Ministro da Saúde terá de defender ou discutir suas políticas publicamente, o Ministro das Relações Exteriores deve justificar suas escolhas frente à atenção pública. É bizarro criticar o Ministro das Relações Exteriores por se juntar a um partido político: afinal de contas, quem criticou Barack Obama por nomear Hillary Clinton como Secretária de Estado em 2008, com base no fato que ela era membro do Partido Democrata? Pode-se muito bem discordar da estratégia internacional do Brasil, mas os desacordos devem se basear sobre as próprias questões de política externa, e não no fato que são “demasiadamente politizadas”.

Se o Brasil quiser assumir suas responsabilidades globais, não bastará um Ministério das Relações Exteriores forte; também é necessário mudar o debate doméstico acerca da política externa, tornando-o mais vibrante e mais constante. A solução não é diminuir a política, e sim aumentá-la e intensificar a democracia no debate sobre relações exteriores, com dezenas de ONGs como a Conectas Direitos Humanos conclamando, centenas de bloggers, colunistas, lobistas, e estudantes de política externa, assim como ex-formuladores de políticas exteriores e analistas políticos comentando, criticando ou defendendo a estratégia internacional do Brasil.

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Foto: José Cruz ABr

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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