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Brasil pagará um preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia (EL PAÍS)

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O coronavírus provavelmente moldará nossa era mais do que qualquer outro evento, elevando governantes mundo afora à posição de líderes cujas decisões terão impacto por décadas

OLIVER STUENKEL
08 JUN 2020 – 14:45 BRT

A pandemia como a que estamos vivendo é tão rara e grave que pode ser tornar o evento histórico mais marcante de nossas vidas. Marcará o início de uma nova era. Em função disso, as decisões dos líderes no momento e nos próximos anos, em um mundo em fluxo, terão consequências sistêmicas em longo prazo para seus países e a ordem global.

Como afirmou recentemente Janan Ganesh, colunista do jornal britânico Financial Times, é provável que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha, junto com o presidente chinês Xi Jinping, a oportunidade de definir os fundamentos da era pós-pandemia. Cita como exemplo histórico o presidente americano Harry Truman, que chegou ao poder depois da morte de Franklin D. Roosevelt no fim da Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias normais, Truman dificilmente teria sido um líder relevante. O momento histórico em que se tornou presidente, porém, era atípico. Truman implementou o Plano Marshall para reconstruir a economia da Europa Ocidental e fundou a OTAN, tornando-se o líder americano de maior impacto da segunda metade do século 20. Por décadas, seus sucessores operaram dentro do sistema geopolítico que ele havia desenhado. Em um mundo em fluxo, líderes ao redor do mundo se tornaram altamente relevantes para suas nações naquele momento, desde Konrad Adenauer na Alemanha, Mao Tsé Tung na China até o premiê indiano Jawaharlal Nehru e o líder israelense David Ben-Gurion. Como observa Ganesh, “as circunstâncias contavam mais do que o indivíduo.”

Tal como em 1945, há cada vez mais evidência de que a atual pandemia será um momento de transformação, elevando governantes mundo afora, mais uma vez, à posição de líderes cujas decisões terão impacto em seus países por décadas. A resposta confusa dos EUA ao novo coronavírus sugere que a época marcada pela liderança global de Washington chegou ao fim, iniciando um processo complexo de transição para um sistema liderado por duas potências. A pandemia também deve simbolizar o fim da hiperglobalização, provavelmente com um maior papel do Estado na economia e taxas de crescimento mais baixas em países em desenvolvimento. James Crabtree, professor da Universidade Nacional da Singapura, escreveu recentemente que todo o conceito de Mercados Emergentes deve deixar de existir, com profundas consequências para a distribuição global de poder e o futuro do capitalismo. A crise sanitária global causará o primeiro retrocesso no desenvolvimento humano global em três décadas, causando aumentos bruscos nas taxas de pobreza e instabilidade política em numerosos países ao redor do mundo, alimentando a xenofobia, o nacionalismo e acelerando a crise do multilateralismo. Até a chegada de uma vacina, países terão que intercalar a flexibilização da quarentena com novos períodos de isolamento, sempre acompanhados de milhares de testes.

No meio disso tudo, nascerá uma ordem diferente, moldada pelas estratégias adotadas por líderes ao redor do mundo. Como as escolhas durante a atual pandemia deverão definir o contexto no qual futuros governos operarão, os países que atualmente têm líderes inteligentes e visionários provavelmente serão recompensados ​​desproporcionalmente —simplesmente porque, devido ao momento histórico, suas lideranças terão maior impacto. Países com governos eficientes sairão da crise mais unificados e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos. Nesse países, cientistas e profissionais da saúde ganharão mais visibilidade e respeito, e há um debate público construtivo sobre como encontrar o equilíbrio certo entre aumentar a capacidade de monitoramento do Estado e a proteção da privacidade, como reabrir a economia sem pôr vidas em risco e como financiar os pacotes de estímulo econômico.

Países que atualmente têm maus líderes, por outro lado, podem acabar sendo punidos mais do que em circunstâncias normais. Além de gerir mal a pandemia e prorrogar a crise sanitária e econômica, eles não levam evidência científica em consideração e não atuam de maneira transparente. Deixarão de estabelecer as bases necessárias para iniciar a dolorosa adaptação de longo prazo. Ao invés de unificar seus países, deixarão suas sociedades mais divididas e desconfiadas, inviabilizando um debate público sobre os numerosos desafios, desde o futuro da educação, da economia, do emprego, do transporte e até do processo eleitoral em tempos de pandemia. Como sempre na história, países com lideranças inteligentes aproveitarão do mundo em fluxo para galgar posições, enquanto as nações à deriva perderão relevância.

Levará muito tempo para se poder avaliar as consequências geopolíticas da pandemia e o inevitável rearranjo na distribuição de poder entre nações. Porém, até agora, tudo indica que o Brasil será um dos grandes perdedores geopolíticos deste momento histórico. Quando o Brasil não foi nem sequer convidado para lançar, em abril, a iniciativa “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a Diagnósticos, Tratamento e Vacina contra a Covid-19”, que reúne Governos, organizações internacionais, fundações e empresas privadas, revelou-se ali uma irrelevância internacional do Brasil que pode ser o novo normal pós-pandemia —e que demoraria anos para ser revertida. A triste realidade é que, neste momento, o Brasil traz muito pouco à mesa dos debates sobre os maiores desafios que a humanidade enfrenta. É relevante apenas no sentido em que causa preocupação dentro e fora do país. Além das muitas mortes que poderiam ser evitadas com uma resposta mais coerente e baseada em evidências científicas, o Brasil pode chegar a pagar um preço muito maior, por muito mais tempo, do que a maioria acredita.

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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