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Política externa brasileira: na escuridão

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Chama atenção a natureza do atual debate sobre a política externa brasileira: ao invés de discutir ideias sobre como melhor defender os interesses brasileiros no exterior, a discussão entre os analistas de política externa é marcada por uma crescente perplexidade e reprovação do descaso da presidente em relação ao Ministério das Relações Exteriores e aos assuntos de política externa em geral. Até mesmo aqueles que advogam em favor do governo reeleito admitem, em conversas nos bastidores, que a política externa brasileira está passando pela fase mais difícil em muitos anos.

Atualmente, o orçamento total do ministério corresponde a menos da metade do que era durante o governo Lula (em termos percentuais do orçamento total) – um período de ativismo e expansão que muitos hoje chamam de “anos dourados”. No próximo ano, cortes orçamentários adicionais entrarão em vigor, reduzindo drasticamente o escopo do engajamento internacional brasileiro. Algumas embaixadas brasileiras ao redor do mundo cortaram atividades ou as cancelaram por completo. Hoje, diplomatas interessados em participar de eventos ou reuniões, por vezes, precisam pedir que outros ministérios ou organizações internacionais paguem suas passagens aéreas – limitando a autonomia deles. A nova turma de diplomatas aprovados no concurso deste ano é a menor dos últimos tempos. De certa forma, o fato do Ministério das Relações Exteriores andar à meia-luz para reduzir seus custos é um exemplo emblemático da atual política externa apagada.

Após oito anos de ativismo sem precedentes na política externa conduzida pelo presidente Lula, por que as coisas saíram dos eixos?

Há quatro fatores principais para explicar o atual estado da política externa brasileira.
Primeiramente, na perspectiva de Brasília, o ambiente global de hoje é bem menos favorável que há apenas alguns anos, quando o Brasil cresceu economicamente apesar de uma profunda crise econômica na Europa e nos Estados Unidos, abrindo uma janela de oportunidade. Hoje, a economia brasileira está estagnada, enquanto os Estados Unidos estão se recuperando. A China e a Índia são os únicos países do grupo BRICS que merecem ser chamados de potências emergentes. Esta situação temporariamente limita a credibilidade e a legitimidade da reivindicação brasileira por um papel de maior prestígio na ordem internacional global.

O segundo fator a ser considerado é que, diferente de todos que a precederam desde fins da década de 1980, a presidente Dilma não considera a política externa como elemento ou ferramenta essencial para a concretização de seus objetivos de políticas públicas como um todo. Ao invés de pensar como usar as tendências internacionais em seu favor no âmbito interno, Dilma parece considerar a política internacional um incômodo. O recuo internacional e a passividade do Brasil nos últimos quatro anos não resultam, portanto, de um argumento bem elaborado ou de uma estratégia bem pensada, mas, principalmente, da influência de uma chefe de Estado tanto alheia à política externa como empenhada em centralizar, ao extremo, o processo decisório. Dessa forma, há pouco espaço para um Ministro das Relações Exteriores independente e com projeção global – ou para qualquer outro membro do gabinete, exceto para o Ministro-chefe da Casa Civil. Dilma fez menos viagens que Lula e não assumiu protagonismo em debates sobre assuntos regionais – por exemplo, a relação do Mercosul com a Aliança do Pacífico – ou desafios globais, como o Ebola, o ISIS ou a Ucrânia.

O terceiro fator complicador, vinculado ao segundo, é a falta de influência política do Itamaraty. A realidade atual contrasta-se à gestão de Lula, quando o Ministério das Relações Exteriores possuía um formidável operador político, Samuel Pinheiro Guimarães, que sabia como poucos lidar com o sistema de Brasília. O eficiente ex-secretário-geral do Itamaraty teve o mérito de aumentar o orçamento do ministério e de fortalecer o papel da instituição no governo de tal forma que Celso Amorim conduziu uma expansão sem precedentes no Itamaraty. Isso fez com que o Ministério das Relações Exteriores se tornasse um elemento indispensável da visão geral do presidente Lula – um feito notável considerando que política externa não rende muitos votos.

Apesar de ter pouca influência para o eleitor, o quarto e último fator que contribui para o mal estar atual é que o Ministério das Relações Exteriores não tem estrutura para se relacionar com a sociedade civil brasileira. Para a maioria dos cidadãos, simplesmente não está claro como a política externa pode afetar suas vidas ou por que a redução do orçamento do Itamaraty em mais de 50% é um problema. Isso pode fazer pouca diferença em tempos bons para o Ministério, porém, sob a tutela de Dilma, ficou evidente que quase não há setores da sociedade que se manifestam e pressionam a presidente a parar de desmantelar o aparato da política externa brasileira.

Quando a imprensa (por vezes, sem justificativa) ataca o Ministério das Relações Exteriores, a capacidade do Itamaraty de revidar ataques e se defender é limitada. Enquanto outros ministérios contratam assessores de imprensa profissionais, os secretários de imprensa do Ministério de Relações Exteriores são diplomatas de carreira, que, apesar de serem intelectualmente preparados, geralmente não têm muita experiência em lidar com a imprensa em tempos de crise. Conscientizar o público de que há uma forte conexão entre política externa e políticas públicas – ou, em outras palavras, fazer com que grupos nacionais percebam que a política externa pode auxiliá-los a alcançar objetivos para a política interna – poderia ajudar a convencer a presidente que o custo do não engajamento na arena internacional é simplesmente alto demais.

Apesar disso, a diplomacia brasileira dos últimos quatro anos, liderada por Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo, teve vários momentos de destaque, como, por exemplo, a organização da Rio+20, a eleição de brasileiros para liderar a OMC e a FAO, a Responsabilidade ao Proteger (RwP), a organização do NetMundial em São Paulo e a criação do Banco dos BRICS. Ainda assim, a combinação de fatores descrita acima – principalmente, o segundo – deixa pouco espaço para otimismo para os próximos anos.

No próximo ano, o número de desafios de política externa que o Brasil enfrentará é imenso. A Venezuela e a Argentina – os dois parceiros mais importantes na região – estão enfrentando problemas internos, e vitórias da oposição em ambos os países podem alterar fundamentalmente a dinâmica regional. Comércio exterior e negociações sobre o clima podem ser objetos de um número importante de acordos, afetando bilhões de pessoas – brasileiros, inclusive. Os laços diplomáticos com os Estados Unidos precisam ser aprimorados, a 7a Cúpula BRICS na Rússia demandará um delicado exercício de busca de equilíbrio, pois Moscou está se preparando para anos de isolamento e confronto com o Ocidente. Em poucas ocasiões o Brasil precisou tanto de uma forte presença internacional como agora.

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Photo credit: Dida Sampaio/AE/VEJA

SOBRE

Oliver Stuenkel

Oliver Della Costa Stuenkel é analista político, autor, palestrante e professor na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Ele também é pesquisador no Carnegie Endowment em Washington DC e no Instituto de Política Pública Global (GPPi) ​​em Berlim, e colunista do Estadão e da revista Americas Quarterly. Sua pesquisa concentra-se na geopolítica, nas potências emergentes, na política latino-americana e no papel do Brasil no mundo. Ele é o autor de vários livros sobre política internacional, como The BRICS and the Future of Global Order (Lexington) e Post-Western World: How emerging powers are remaking world order (Polity). Ele atualmente escreve um livro sobre a competição tecnológica entre a China e os Estados Unidos.

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